Sarau da Outra: um manifesto
- Amanda Damasio

- 16 de jun.
- 5 min de leitura
A coragem demora muito a chegar na vida das mulheres. Eu até comecei cedo: aos dezessete anos eu já tinha a audácia de me chamar poeta e subia tremendo em palcos improvisados de bar pra ler meus textos no microfone. Fico olhando para trás admirada por essa jovem que enfrentava seus medos assim tão de frente, que agarrava toda e qualquer oportunidade de mostrar sua obra por aí. Fico me achando corajosa. Mas eu sei o que tinha sido necessário para ter coragem: primeiro, ter uma família que valorizava a leitura. Ter uma mãe que lia histórias infantis em voz alta. Uma tia professora que me alfabetizou com gana e sensibilidade. Professoras ótimas na pré-escola, no fundamental, no ensino médio, movimentos bem possíveis em espaços de escola particular. Um outro professor de redação que apontou a escrita como horizonte. Que me convocou a ignorar a ideia de textos pro ENEM e partir pra crônica, me mostrando que a literatura era bem mais do que se preparar pro vestibular. Um professor de literatura do Ensino Médio que me convidou para saraus em outra cidade – e que mentia a minha idade pra garantir minha participação. As caronas dadas pelo meu pai, até minha tia que se enfiava em eventos literários esquisitíssimos comigo. Amigos que me leram desde sempre, um em especial que enviou um texto meu para o jornal sem eu saber. E assim fui publicada. Gente que me indicou livros, gente que compartilhou meus textos, gente que pendurou-os na parede. Gente que me convidou para antologias, escritores famosos que respondiam meus e-mails juvenis e esperançosos. Envios e mais envios de projetos para editais aprovados, um livro premiado pelo Estado, gente topando minhas aulas de escrita. Tudo, tudo isso, décadas disso, para eu me sentir autorizada a me chamar escritora. Essa coisa tão simples. Para me dar um nome e função. Para reconhecer algo que, basicamente, nunca deixei de fazer. Para dar três passos em direção ao microfone sem titubear muito.
Sou privilegiadíssima nesse lugar. E esse lugar é muito raro para as mulheres. Em geral, a experiência delas em relação à criação é o silenciamento, a violência. É o questionamento: o que você acha que está fazendo aqui? Dizendo coisas sem sentido em voz alta? É afugentá-las de qualquer espaço criativo, holofote, glória – de espaços no geral. Ainda, às mulheres de hoje sobra a cozinha, o servir aos outros, o silêncio, coisas que dizem que a gente sabe fazer muito bem. Coisas que dizem que a gente não precisa aprender, que vêm prontas de fábrica. Aí elas fogem do microfone, nunca tendo tempo hábil pra enfrentar o horror de uma página em branco – o que já não é fácil. Aí elas calam na sala de aula, raramente fazem perguntas, achando que o que sabem já está feito e que não há nada a acrescentar. Os palcos ficam vazios. Os espaços ficam em aberto – e nós sabemos muito bem quem é que vem preenchê-los. Não nos sobra nada, nada além do serviço, da cozinha, do silêncio.
Eu queria escrever esse texto como quem lança no ar um punho fechado, convocando as mulheres a ignorar tudo isso. Tudo o que dizem que em nós é bom já há tantos séculos – esse lugar já escavado pelas antepassadas e estático no tempo. Digo isso porque participo e ministro oficinas de escrita – e nos momentos de leitura em voz alta, antes de tudo, as mulheres se desculpam. As mulheres dizem que não sabem. Elas explicam, envergonhadas, que o texto escrito em menos de dez minutos não está pronto. Sem falar nas que vão ficando pelo caminho: as que nunca compartilham, nas que desistem durante o processo por se sentirem insuficientes, nas que simplesmente emudecem o desejo antes mesmo de se inscrever na oficina, nas que se comparam, naquelas cuja vida ocorre em espaços tão apertados e fechados que se torna impossível até riscar uma frase num papel.
Escrever é, entre muitas outras coisas, se ouvir. É sentar diante de si mesma, se perguntar, se permitir ter espaço – e ir ouvindo as palavras surgirem do corpo, colocando elas pra fora, seja onde for: no computador, no papel, na cabeça. E a isso não estamos acostumadas. Quem é que nos ouve? Quem é que nos olha? Somos criaturas silenciadas – e tem que ter muitos, muitos processos, muita gente, muitas autorizações, para começarmos a aprender a fazer barulho. Entramos pedindo licença, não queremos chamar atenção – e agora tudo o que mais precisamos fazer é preencher os silêncios. É passar a entender o quanto eles são perigosos. É aprender a fazer barulho – antes mesmo da gente se sentir pronta, do texto estar redondo, porque esse momento não chega. A coragem demora a vir pra vida das mulheres – e pra maioria delas não vai haver o mínimo de condições pra isso. E nós, que temos alguma possibilidade? O que fazemos com isso? O que estamos esperando?
Apesar de olhar pra minha história e me sentir profundamente privilegiada por tanto apoio, tem ali algo que é meu. Que é tentar. Que é ir. Que é apostar. A escrita é uma coisa sem garantias. A gente não tem ideia no que pode dar. E eu sabia disso, assim fui indo: enchendo páginas e páginas com palavras sem utilidade visível, enviar tudo pra mil pessoas por e-mail, me arriscando "a passar vergonha" virtualmente, presencialmente, sendo profundamente insistente. É assim que se abre caminhos por entre a mata escura que é produzir arte. Quem também disse que não passei por desencorajamentos? Milhares, inomináveis. Especialmente quando entrei em Letras, olha que coisa. Mas eu segui, aprendi a imitar os homens nessa cegueira de seguir, seguir, seguir, sem pensar muito. Especialmente sem me perguntar se estou incomodando, atrapalhando. Nessa coisa de parar pra olhar as possibilidades, iam me abrindo portas. E hoje estou do outro lado do poder: eu mesma preparo os saraus. Eu decido quem é que vai fazer parte. Eu puxo as mulheres e minha insistência com elas é de chamá-las. Só elas. Uma por uma. É uma convocação revolucionária – e aqui não vou ser modesta. E vou confessar: é um inferno. Tenho que convencê-las. Seria muito mais fácil fazer misto, desistir. Mas fico aqui, a mandar mil áudios, a implorar, a pedir, a questionar o medo delas – que bom que eu aprendi a insistência. Elas me dizem: eu te ajudo a carregar coisas, a organizar, a chamar outras mulheres, mas não leio no microfone. Tenho vergonha. De novo: pra nós sobra o servir, o silêncio. E nesses dois eu não tenho o menor interesse.
Por que um Sarau só de mulheres? Porque já tivemos muitos saraus só de homens. Porque o nosso silêncio é muito interessante para eles. Porque a escrita de autoria feminina, infelizmente, depende de muitas autorizações – e um evento só para nós pode ser o início de uma coragem. Porque, no fundo, eu sei que elas têm muito a dizer e elas querem dizer. Porque escrita é sobre poder: sobre quem tem espaço, quem faz barulho, quem segura o microfone, quem chama a atenção. E nós nunca tivemos o luxo de fazer tudo isso. Pois agora teremos. E insistiremos.
No dia 22 de junho, um domingo, às 17h, mostraremos que servimos para outras coisas além de silêncio. Nós também podemos aprender a ter coragem.



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