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O que veste a pele

Dizem que cada lugar pede vestes apropriadas. Me pergunto quais se adequam melhor às sessões de análise. Normalmente escolho peças confortáveis para me deitar e levantar sem deixar mais à mostra. O breve espaço de exposição que ainda posso controlar. Minhas roupas já estiveram algumas vezes repousadas no divã, para além do óbvio atrito entre os tecidos que me revestem e a tapeçaria de fibra macia.


Sinto que, hoje, outro algo guiou a minha escolha. A camisa tomada de flores rosas na organza offwhite se impôs a mim. Essa brutalidade me constrangeu. Tive dificuldade em controlar as ondas que me engoliam os olhos. Sua imagem foi tão forte que quase pude alcançar sua pele, que tantas vezes emoldurou esse jardim. A brisa que me atingiu pela janela trouxe a fragrância do seu perfume em meio ao cheiro do velho guarda-roupa de madeira. Quando acariciei o tecido, reconheci suas mãos na minha. Uma herança de duas gerações.


Herdei os traços, a curvatura da unha, a dificuldade de esperar que alguém faça o que preciso e de confiar que possam fazer como me agradaria. A pura, e nada simples, dificuldade de confiar. Me persegue a mania irritante de mudar os móveis de lugar, de abarrotar o refrigerador de qualquer resto que garanta uma refeição rápida em dias de preguiça, de usar as palavras como escudo para viver outras vidas.


Reconheço que apesar do nosso manequim estar a números de distância e haver um caminho entre seus centímetros de altura e o meu, carregamos os mesmos tecidos. Me acoberto com essa camisa e, no espelho, só vejo você.


Faço o trajeto até o consultório com a rua muda. Não ouço nada além das minhas lembranças e meus pensamentos. Dou boa tarde à analista, me deito no divã. Compreendo que essa trama que nos une, também me impede de avançar em uma vida sem você. Se eu pudesse, te teria comigo em todos os cafés da tarde, no aconchego dos dias difíceis e nas risadas insanas das piadas obscenas e ruins. Duramente, essa decisão não coube a nós. A que hoje me cabe é talvez a mais difícil, mas necessária e só eu posso fazer. Então, me desculpe, vó, mas minhas vestes eu vou precisar aprender a escolher.

 

 
 
 

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