A gente ainda tem muita coisa pra passar
- Isabela Torezan

- 29 de out.
- 3 min de leitura
Chamo eles de Sartre e Simone de Beauvoir. Sartre mora na casa da parte de baixo do terreno conjugado que ele e Simone compraram juntos, a casa dela fica na parte de cima (o terreno é bem inclinado) e é bem mais bonita. Na verdade, são dois terrenos do condomínio, que ficaram unidos por um gramado e uma piscina. Eles não têm filhos, nem cachorros, e vivem há vários anos assim juntos e separados. Como o famoso casal francês.
Sempre passo caminhando pela casa deles, e já vi várias vezes os dois sentados na varanda da casa debaixo tomando suco, o jarro do liquidificador pousado na mesa de madeira barata. Também já vi ela fazendo exercícios na piscina, ele deitado na espreguiçadeira, aparentemente fazendo literalmente o que a cadeira pede, espreguiçar-se. Na maior parte das vezes, porém, Sartre está fora das vistas, e Simone pode ser observada trabalhando arduamente em seu lindo jardim, regando plantas e tirando ervas daninhas com dedicação de mãe.
Eu admirava bastante a Simone e sua paz, com sua casinha perfeita que ela mantém intocada pelo Sartre e sua afeição ao descuido (não sei quando foi a última vez que aquela varanda viu uma vassoura). Até ver, fatídico dia para o feminismo, eu pensei, Simone descendo o gramado do terreno com uma deslumbrante torre de roupas e lençóis passados e dobrados. Roupas e lençóis do Sartre.
Ah não, Simone. Se Sartre não passa lençóis, ele que durma em lençóis amassados. Você se libertou de ter que dormir sobre os mesmos lençóis que ele, quando não quiser. Eu mesma detesto passar roupas, e na verdade não vejo sentido em passar lençóis. Lavá-los uma vez por semana me parece suficiente. Mas Simone claramente considera importante alisar a roupa de cama, e minha admiração por ela murchou consideravelmente ao saber que ela desperdiça essa oportunidade de fazer algo só para ela. Trabalho dobrado para dar conforto a um homem que muito provavelmente dormiria muito bem em lençóis amassados.
Vi essa cena mais vezes, e em uma delas Simone assobiou quando descia o gramado, um aviso sonoro de que chegava com a carga de tecidos limpinhos. Nesse dia, pensei que talvez ela não só passasse, como lavasse as coisas dele. Percebi que já tinha visto um varal cheio montado na varanda dela diversas vezes, mas nunca na dele. Se Sartre lava, ele tem uma secadora. O que não combina com uma mesa de madeira barata caindo aos pedaços.
E parei aí com as reflexões. Acho mais prejudicial ao feminismo eu fazendo suposições e julgando as escolhas da Simone, cujo verdadeiro nome nem é Simone e com a qual eu só troquei “boa tarde” algumas dezenas de vezes, do que a própria passando os lençóis do marido que ela expulsou da cama. Aliás, passei a usar o caso para me orientar toda vez que tenho dúvidas se estou colaborando com a perpetuação de algum estereótipo caquético e fora do prazo de validade, ou talvez agindo contra princípios e movimentos que eu mesma defendo. Por acaso eu sei a história de vida da Simone, suas motivações para passar roupa, sua verdadeira ligação com Sartre? Não, não sei. E esse era o mínimo de informação que eu deveria ter antes de criticar um pedaço da rotina dela. Moral da história: cuidado para não gastar energia no lugar errado. Não faltam situações transbordantes de provas e informações que merecem a minha indignação, raiva, apoio, dedicação e julgamento crítico. Depois que Simone terminar de passar, e eu chegar da caminhada, a gente podia é ir juntas impedir uns feminicídios.



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