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As bordas do riso

Faltava dois dias para a oficina de palhaçaria, aquela sobre a qual não conseguia me decidir se deveria ou não participar. Já tinha convidado colegas na esperança da companhia amortecer meus temores. Nada.

 

Entre o medo de ir e o medo de me ver estática, liguei: “se ainda tiver vagas, me inscrevo”. Tinha. E eu nem sabia se era uma boa notícia. O frio na espinha incitava que não. Vi os braços do medo se tornarem concreto e me abraçarem feito solo. Ensaiei frases para pontuar meus limites e pedir abono de minha participação em alguma atividade que pesasse.

 

Quando cheguei, quase todos estavam presentes e a conversa havia iniciado. Das dezesseis vagas, apenas oito ocupadas. Parece que o medo da exposição não é só meu. A conversa começou um tanto acadêmica, repassando as teorias que envolvem o palhaço e a palhaçaria. O ar professoral me acolheu. Me senti em casa. Meus músculos relaxaram por um instante.

 

Eu, que nem gostava de palhaço, exceto da Adelaide, estava encantada por tudo que ouvia. Se remexia em mim um desejo de abraçá-lo e compartilhar: “como tudo isso é lindo”. Pensei em quão estranho ou invasivo aquilo soaria. A prudência venceu e permaneci no meu lugar. Mas algo dentro de mim tentava escapar e se revelava no lacrimejar constante do meu olho direito, uma torneira com a borracha frouxa, sem conter a água, que insistia em pingar. Uma goteira à princípio descolada de qualquer emoção nominável. Cria ser a ausência dos óculos forçando a vista na sala escura.

 

Eu observava tudo atenta, apaixonada, totalmente identificada com o novo universo que se revelava. De repente, a palhaça era eu, em vestes que não me serviam, tentando caber em um mundo que não era meu. Curiosamente, não estranhava o novo ambiente. Nele, eu cabia por inteira. O mundo lá fora é que não me abarcava.

 

Entre as observações inusitadas, uma gargalhada me escapou. Com os braços cruzados, apoiado em minhas costas, me dobrei para frente. O riso exigia mais do que meus músculos da face e minhas cordas vocais podiam entregar. O palestrante notou, sublinhou e segurando carinhosamente minhas mãos, me convidou a deixar o riso livre. “Como poderia deixar algo livre, se esse algo não me pertencia? se liberdade nunca me foi opção?”. “Se eu me deixar livre, vou chorar”, argumentei. “Pode chorar. Ser palhaço não é apenas sobre o riso, mas sobre toda sorte de sentimentos da experiência humana”. Chorei. Minhas lágrimas apontavam o único curso possível: fluir para fora de mim. Ser corpo falante, dançante. Não era apenas riso represado. Era vida encolhida. Empurrada para dentro das bordas erigidas artificialmente. Bordas altas, espessas, sufocantes e cheias de fissuras. Por onde até o momento só havia podido espiar. Agora deixava fluir, na esperança de quem sabe, fazê-las ruir.

 

 
 
 

1 comentário


Somos todos palhaços em vestes que não nos servem, tentando caber em um mundo que não é nosso. Muito legal o texto!

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